sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O Beijo da Noite


Ela estava ali. Eu cheguei, olhei para a cama e lá estava ela. Lasciva, me desejando. Não falou nada, não me olhou. Quase não se mexeu. Eu, sinceramente, não senti vontade, naquele momento, de me unir a ela. Tinha coisas a fazer e comecei a correr pela casa. Peguei algumas peças de roupa e coloquei na mala. Separei um tênis e coloquei na mala. Escovei meus dentes, apaguei as luzes e fui para o quarto. Ela ainda estava ali. Não me olhou. Quase não se mexeu. Eu disse

- Noite, ainda preciso ler e aguardar o horário certo para dormir. Tenho que responder a algumas mensagens e, só então, unir-me a você.

Ela não me olhou. Apenas disse:

- Por que, então, não aproveitar o tempo e ouvir um iDoser?

Como que hipnotizado, atendi prontamente. "Por que não?", pensei. Seriam apenas 40 minutos, eu poderia experimentar algumas sensações diferentes e, ao final, acordaria, responderia as mensagens que tivesse recebido e poderia dormir em paz, após alguma leitura e uma ligação importantíssima. Coloquei os fones de ouvido, fechei os olhos. 40 minutos apenas...

***

Desperto. "Acabou", pensei. Olhei no celular, várias mensagens piscavam na tela sobrecarregada. O relógio marcava 1h. Três horas haviam se passado. Ela estava ali, deitada do meu lado, satisfeita.

- Noite, o que fez?? - perguntei, assustado.

- Apenas aproveitei seu momento de meditação e usei seu sono. Estava com muita vontade. Desculpe.

Seu sorriso sarcástico me faz sentir ainda mais arrepios. Respondo as mensagens, espero... Nada. Tudo bem, o que mais fazer, se não voltar a dormir?
Mas não é o que ela quer. Enquanto meu cérebro vai diminuindo sua frequência, posso senti-la unindo-se a ele, abraçando-o, até que minha visão se escureceu completamente, e até meus pensamentos mais obscuros desapareceram. Sonhei. Muitos sonhos, muitas pessoas, sensações, música... Foi tudo estranho. Acordei com calor, acordei assustado, acordei com o despertador e, somente neste último momento, pude desvencilhar-me daquele manto negro que me prendia nas terras de Morpheus.

- Acabou. Estou partindo. - disse, decidido.

Nenhuma resposta. Quando olho para o lado, a cama vazia, mais fria que de costume, pela presença daquela que se assenhorou de minha mente nas últimas oito horas. Nada, nem um beijo de despedida. Nada. Levanto-me, tomo um copo de suco e saio. Pelo menos eu estava livre, eu podia pensar e trabalhar e agir livre. Sem mais aprisionamentos do meu pensamento.
Ao sentar diante do computador, vejo um convite, feito por um amigo, para participar de um grupo literário. A ideia me agrada. A visão fica turva. A mente parece paralisada. Logo percebo o que está acontecendo. Não ouço, mas sinto ecoar no íntimo de meus pensamentos:

- Olá.

A única imagem que vejo é um sorriso. Parece-me, inclusive, o sorriso daquele gato, do País das Maravilhas. Ele se abre e sinto como se pudesse observar minha decadência enquanto meus dedos ligeiros percorrem o negro teclado, traçando novas linhas, novas palavras, descrevendo a noite e criando esta nova crônica.